Prévia – Capítulo 1:
“Ecos do Amor Desfeito”
O ríspido silêncio e vazio da minha casa, foram abruptamente interrompidos pelo meu grito de desespero.
Poderia ter sentido dor, tristeza e amargura, mas o único sentimento que pulsou e transcendeu minha alma foi o ódio.
Eu a amava, mas em instantes meu amor se corrompeu ao ódio intenso e infinito.
Em mais de uma década, minha irmã Maysa e eu fomos uma dupla dinâmica de melhores amigas. Uma relação de amor, intensa, porém complicada.
Sempre a admirei, às vezes, ela me tinha como uma pedra no sapato. E eu até entendo ela, eu sempre mexendo em suas coisas, riscando e quebrando tudo o que era dela, no fundo, eu só queria ser vista.
Hoje entendo que as coisas não funcionam assim, às vezes, nós só precisamos estar ali, para sermos vistos.
Ver sua melhor amiga te deixando gradativamente, é como deixar o ácido corroer seus ossos aos poucos. A dor é muita, mas o estrago é ainda pior.
Sempre sozinha pela casa, na escola ou onde quer que eu fosse, sem amigos ou família que de fato se importasse, apenas ela. E a ver partir para longe de mim, doeu, doeu muito. Ver ela amando mais a outros do que a mim, a ver com os outros e fazendo com eles o que nós fazíamos juntas.
Acho que a entendo, mas não deixa de doer.
Eu senti ódio quando a vi no chão do banheiro, caída, com a boca ressecada, seus olhos vazios, sua pele fria. Posso dizer que senti nojo também. Ódio e nojo, sentimentos que juntos me fizeram gritar em desespero por ela.
A dor é estranha, a sensação de perder alguém, é confusa.
Às vezes dói de forma aguda e intensa, como uma faca afiada de dois gumes penetrando o crânio vazio. Em outros momentos é uma dor passiva e regular, como o sangue jorrando pela goela e te sufocando até a morte .
Às vezes a dor tem nome, significado, data de início e de fim. Em outros momentos a dor tem perfume, aromas intensos que te lembram e te fazem sentir dor. E apesar de suas diferenças, a dor sempre dói.
Um trovão rompeu pelo oceano escuro que outrora calado e preenchido pelo silêncio. Foi exatamente como saiu da minha boca naquele momento em que a vi, morta, exaurida, mirrada e já sem vida.
Não chorei. Não.
Mas gritei, gritei tanto que meus olhos lacrimejaram, minha boca ressecada com o ar quente que saia de mim e minhas mãos tremiam muito, não havia mais forças em mim, nem sequer para segurar o celular ou ligar para os bombeiros e tentar explicar o que aconteceu.
O azulejo úmido do banheiro molhou minhas costas assim que caí sobre ele, escorreguei quase que lentamente, mas me prensava contra parede, talvez ela pudesse me abraçar, talvez, só talvez o frio e úmido azulejo pudesse me tocar.
Acho que eu nunca vou conseguir entender o que aconteceu. Estou traumatizada pelo resto da minha vida. Para sempre.
Nunca, eu nunca poderei me esquecer do seu sangue, espesso e preto, sangue não era pra ser vermelho?
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Faz dois dias que você partiu, eu realmente não entendo. Desde anteontem eu não consigo comer nada. Ninguém em casa comeu nada até agora.
Descemos para tomar café como de costume, ou ao menos como deveríamos ser. Deveríamos tomar o nosso café, todos juntos e depois nos despedirmos, como sempre. Mas infelizmente não conseguimos.
Droga.
Uau, isso foi completamente estranho, todos ao redor de uma mesa para seis pessoas, e somente cinco. Todos com o olhar ao rel. Sem sentido e mexendo na comida como se fosse apenas nada.
Eu tentei comer, mas não consegui.
Sabia que pela primeira vez eu não me senti excluída ou sozinha em casa?
Estranho pensar que sem você em casa, a única pessoa que me fazia me sentir bem, que me fazia não me sentir sozinha, não está e justamente agora que você partiu eu não me sinto mais sozinha. Será então que você é quem me excluia? Mesmo quando estava me incluindo e abraçando.
Não é possível que você, a menina que sempre ia no meu quarto de madrugada, me abraçava e me contava tudo, ou às vezes só ia pra ficar lá.
Não poderia acreditar que a única pessoa que sempre me incluiu era a culpada pela minha solidão interna, e o pior, eu nunca percebi.
Talvez eu nunca vá saber a verdade, e isso também é culpa sua.
Eu fui na Sandra hoje. Minha psicóloga. Ela também sentiu sua perda. Eu pude ver nos olhos dela.
Ela me pediu para começar a escrever, para ir limpando a mente. Estou tentando.
